segunda-feira, dezembro 13, 2010

Os Deveres da Deriva
Mais uma obra da Escola Risperidona de Literatura

Já era o segundo dia de nossas desgraças e as moringas estavam abaixo da metade. O pirata maldito havia nos colocado naquele apuro sem horizonte. Acreditou que voaria sobre as águas com o lastro oco com seu galeão. Quis fazer comércio rápido enchendo seu navio de especiarias, artefatos e outros piratas tão ambiciosos e ágeis quanto ele. Uma tripulação sempre disposta a repelir um saque. Cérberos bípedes do mar que trariam o inferno a qualquer corsário para assaltar seus tesouros, suas almas, seus escalpos e as bocas que beijavam a bunda de uma coroa qualquer. Os ratos pularam todos do barco e seguiram a tradição deixando o capitão no navio. Mas este resolveu dividir comigo sua maldição. Pegou-me pelo ombro e a tenacidade de seus dedos nodosos me aparou a ponto de paralisar-me.



"Fica, menino! Você é meu ou te mato!" - o velho falou com os olhos arregalados mostrando nos cílios a conta de teus assassinatos e a proscrição de tua índole insana. Ele continuou segurando meu ombro enquanto xingava sua tripulação calhorda. O galeão inclinava-se indo a pique e sua mão já não se agarrava ao meu ombro, mas procurava um equilíbrio frágil. Quando o chão ficou íngrime encostamos nossas costas na madeira. Nesta hora eu rezei e fechei os olhos. Só lembro de sentir meu corpo cair de mau jeito na água. Só a imagem que veio depois de minha prece que me acolhia do terror foi a do mastro do navio apontar o céu, como se fosse o dedo do velho praguejando as nuvens que já haviam se desfeito.



O navio afundou e logo retornou parcialmente num movimento pesadamente gracioso como o rabo de uma baleia que se revela à tona. O velho estúpido vedara seu barco à perfeição. Além disso havia feito a nau com um lastro maior. Acreditava que diminuindo a imersão do calado com o mar faria o barco flanar pelos oceanos. Sua engenharia exdrúxula acabou fazendo do calado cortante a nossa ilha, o porto seguro onde o velho resmungava os tesouros gastos para mandar fazer tal embaração. Xingava o navio e a embarcação. E neste palavrório consumiu-se nosso primeiro dia de náufragos. O velho praguejou tão vorazmente que acho que as próximas cinco gerações de seus traidores nasceriam com lepra só por consideração por parte de Deus e do Diabo.



“Vê alguma península? Algum porto?” – era o que eu perguntava ansioso e desesperado naquela manhã. Só depois, quando finalmente em terra e muitos anos depois, notei que talvez nunca tenha dado um bom dia sequer ao velho.

“Vejo, vejo sim! Vejo Sagres, Córdoba, Trípoli, Ancara...” – ele prosseguia olhando o horizonte sem notar minha expectativa dissolvendo em meu rosto. Ele parecia saber o tempo exato de dar com a minha cara desolada para prosseguir me olhando – “...Estocolmo, Paris, Xangai, Nairobi, Goa, Moscou, Tóquio e a casa da senhora sua mãe. E lá me fartarei nas despensas e nas carnes da tua mãe. Mas antes vou degolá-lo, para que não me enfades durante o coito!”



Era como se desde o início ele tivesse me condecorado primeiro imediato e fiel companheiro de tua desgraça. Eu e ele naquela nau absurda com seus mastros, velas, leme e tudo mais submerso, enquanto o casco reluzia lustroso à luz do Sol. Se ele estava desolado, eu era apenas o cachorro sarnento com quem ele resolveu passear por aquele inferno. O infeliz a quem ele ordenava:



“Mergulha em meu galeão e traga uma tina da cozinha. Depois disso traga-me uma caixa de lentes. Está no depósito de mercadorias junto com outras coisas vindas de Amsterdã.” – sua voz era clara apesar do tom rasgado conseguido ao custo de tuas pragas berradas. Quando eu me preparava para pular dentro da água ele prosseguiu – “Não quebre as malditas lentes. Traga a tina primeiro. Se quebrar estas lentes, juro que te faço carregar este galeão saltimbanco a nado puxando-o por suas tripas!”



A tina foi mais difícil de levar que as lentes. A cada braçada ela parecia encher-se de água. Tive que guiá-la rodando-a pela água. Quando cheguei ao nosso insólito refúgio o velho me vem com uma nova.



“São duas tinas. Trate de achar uma menor que esta. Se não for possível pode pegar daquelas tigelas exuberantes. Aliás, isto seria perfeito! Pegue uma tigela de cristal bem grande. A mais bonita que tiver!” – era só o que me faltava: o velho enlouquecer e resolver inventariar item a item seu estoque falido e molhado. Peguei a tal tina e a levei sobre a caixa de lentes. Queria terminar minhas tarefas de uma vez.



O velho ficou feliz quando viu a tigela e correu para pega-la e colocar dentro da tina. Enquanto isso eu boiava apoiando a caixa de lentes.



“Ora, vá logo com isso! Arraste a caixa pela quilha na proa até aqui em cima com todo cuidado.”



“O navio está de cabeça para baixo, pirata demente! Onde é o raio da proa?”



“É onde você irá apoiar esta caixa e arrastá-la até aqui em cima.” – disse ele calmamente ignorando minha insubordinação. Na mesma calma prosseguiu. – “E se algo acontecer a estas lentes lembre-se que carregarás este galeão a nado com suas tripas como rédeas.”



“Ainda não achou a proa? Com que cabeça entrou para minha tripulação marujo! Nade! Preciso destas lentes.”

Arrastei cuidadosamente a caixa pela quina da quilha. O velho esperava tal uma criança. Seus olhos azuis brilhavam e todas as rugas de sua cara transformaram-se em vincos cômicos e joviais. Quando viu a maior lente do conjunto intacta, festejou e pulou perigando quebrá-la. Correu até a tinha cheia d’água e colocou a lente cuidadosamente de moda que a barriga de vidro ficasse no rumo da tal tigela de cristal.



O velho me pegou forte pelos ombros e temi que ele me beijasse ou pedisse que o sodomizasse frente àquele amontoado quase alquímico seguindo o sortilégio de algum ritual macabro. Eu confesso que duvidava daquela maquinaria estúpida e simplória. Mas ele sorria feliz com seus dentes escuros e trincados.



“Nade até meus aposentos, marujo e pegue uma roupa! Agora sempre teremos água...” - duvidei do produto de seus caprichos, mas não queria contrariá-lo naquele ponto. Resolvi espezinhar.



“Quer que eu pegue os talheres para comermos água?” – ele me deu um tapa jocoso na nuca e retrucou rápido.



“Claro que não, imbecil! Traga talheres de peixe, pois vou pescar!”



“Vai pescar? Com que isca?” – eu já soava vil e sarcástico quando ele me tomou a mão de uma vez e pressionou-a contra o casco reluzente ao Sol.



“Com dedos, ora?” – ele separou habilmente cada um de meus dedos usando sua mão como uma luva de ferro. Enquanto eu esperneava e me debatia desesperado, ele pontuava. – “Não sabe das histórias de piratas sem olhos, pernas, braços e até bundas? Como não sabe disso e entra para minha tripulação?”



O velho pirata me soltou tão rápido quanto me dominou. Seu rosto, antes o de um valentão a acuar seu paspalho predileto, agora tornava-se terno como de um tutor.



“Como entras para um corpo de piratas, mesmo que para comprar e vender mercadorias, sem estar disposto a perder uma parte de teu corpo? Como fugiria das algemas?” – estendeu seus quatro dedos e cortou seu mindinho na altura da unha. – “Agora vá pegar roupa e linha em meus aposentos. Vamos comer e vamos beber!”



Senti um ímpeto de alegria em sintonia com o velho louco. Aquele escroque algum dia da vida já deve ter arrancado o próprio polegar por algum motivo muito bom. Ele me segurou pelo ombro e mandou que eu esperasse. De relance, tirou alguns fios de meu cabelo em um movimento rápido de braços e dedos que só tocaram os fios na hora de colhê-los.

“Esta é tua parte nesta campanha!” – falou profundo e sério – “Reze para que seja útil! Ou você não passará de carne e ossos para os tubarões quando eles vierem...”



Mergulhei para pegar as roupas. Dentro do camarote de capitão, o velho tinha a paisagem de seu passado de glórias para cegá-lo de qualquer rota. Armaduras, espadas, mosquetes ladeavam baús abertos com um sem número de dobrões, libras e tudo que não fosse papel de título com tinta já dissolvida pela água do mar. Tudo isto no teto de seu quarto para ele deitar bêbado em sua cama afixada e afogar-se frente sua glória de saqueador.



Quando saí dos aposentos com as roupas, o velho apareceu como um fantasma submarino no centro da meia-nau invertida. Fez sinal para que eu emergisse. Subimos juntos pelo bombordo e depois tomarmos ar ele pegou em meu ombro eufórico outra vez.



“Dentro de meu camarote há um laboratório. Veja o estado dele e traga à tona todo frasco que estiver arrolhado. Procure também meu frasco de nanquim e minha caneta que deve estar por perto da cama. E procure nas estantes por canos grandes de bambu. Eles estarão muito fortemente vedados. Se você for estúpido de abri-los, eu juro empalá-lo com os pergaminhos que estão dentro dele. Agora vá!”



“E as roupas?” – perguntei exasperado pelas coisas a fazer organizando em minha cabeça as idas e fôlegos de cada coisa.



“Ou você me passa elas agora ou as faz de trouxa para pegar as coisas. Você sabe pelo menos ser esperto ou vive de questionar minhas ordens. Desça, marujo!”



Fui mais uma vez ao camarote e vi o tal laboratório. As peças e vidrarias todas flutuavam muito próximas umas das outras e uma nódoa vermelha as aglutinava. A água por perto era quente e ardia. Coletei os frascos segurando um florete pela lâmina e fazendo o punho da arma como concha para abrigar aquelas vidrarias auspiciosas. As outras coisas estavam quebradas ou imersas naquela mistura infernal.



Recolhi tudo em um fôlego só e levei embalado em uma camisa de tecido grosso. Não queria subir e ter mais coisas a resgatar da nau inversa. Deixasse o velho me pedia um canhão.



“Pegue isso rápido antes que afunde!” – gritei a todo pulmão, soltei o embrulho e mergulhei. Agora eu procuraria o nanquim e a pena, uma vez que segundo o velho os canudos estavam na estante. Pensava comigo se ele iria iniciar suas malditas memórias – “Éramos só eu e um marujo do qual a mãe pretendo profanar” – ou se iria começar a desenhar símbolos malignos para invocar um demônio do mar que lhe deva favores ou que aceite almas rasas e perturbadas.

A pena era colorida e extravagante assim como o frasco de nanquim com seu vidro de formato e aspecto que remontava aos mouros e sarracenos.



Ambos brilhavam laminosamente, quase óbvios naquela ecatombe. Embolei-os em outra camisa de tecido forte para joga-los em segurança sobre o maldito calado hermético. Voltei para pegar os tais canudos. Por um momento pensei em avaliar a possibilidade dos pergaminhos estarem intactos. Eu poderia ter verificado a vedação dos canudos com a boca. Mas meu amor por esta boca minha bem como por meu estômago e tripas me impediram de arriscar-me ao tal empalamento.



O velho me ameaçava e falava de minha mãe. Se eu já não tinha muito respeito por aquele pirata depravado, já estava disposto a torna-me um insubordinado. Levei os tais canudos a tona disposto a jogá-los ao pé do velho e falar para aquele insano umas poucas e boas.



Daí a imagem o peixe enorme me calou. Com um pedaço de seu dedo mínimo o velho havia pego um peixe enorme. Exposto ao sol e aberto, a criatura ocupava uns 4 palmos da quilha. O maldito cortava os pedaços e colocava em uma tigela de cristal. O cretino provavelmente foi até o depósito enquanto eu catava seus frascos.



Enquanto dilacerava nossa refeição, o pirata começou a perguntar sobre tais e tais essências, poções e venenos que estavam em seu laboratório e eu não havia recolhido. Eram poucos e eu havia pego todos que pude recolher. Todos os outros haviam se quebrado e além disso àquela época eu não sabia ler.



“Pois vamos descer juntos e ver o que você aprontou em meu laboratório!” – eu estava pronto a matá-lo caso ele tentasse primeiro. Submersos estaríamos pau a pau. Seus braços e pernas podiam ser como gravetos, mas meu fôlego era o de um menino que poderia fugir daquele inferno a nado se tivesse me dado isso na cabeça.



E então descemos até seu camarote para ver o estado do tal laboratório. Quando chegamos lá o velho doido não se descuidou em enfiar sua mão que ainda sangrava na nódoa satânica. Vi seu sangue ferver e coagular e o velho reagir efusivo. Cutucou-me e sinalizou para subirmos.



“Vá até a copa, pegue um caldeirão. Recolha aquela mistura vermelha toda e assim como fez com a caixa de lentes vá até a proa. Lá eu te ajudo a subir tudo!”



“Não vou chegar perto daquele sangue de Belzebu que você invocou para se amaldiçoar!”



“Que seja então, seu estúpido! Procure ferramentas para serrar o mastro principal pouco abaixo do torreão.”



“Quer afundar teu galeão de vez, velho louco? Em quantos problemas queres se envolver para que eu comece a apiedar de ti?” – o velho ficou furioso e vi que ali, fora d’água ele poderia muito bem estocar-me nas axilas para observar-me morrer.



“Escute, marujo! Eu não preciso de tua piedade e muito menos da tua vaga noção de ser um homem do mar. Nadas muito bem e tens fôlego. Morto ou esquartejado você ainda não tem nenhuma utilidade para mim. Então cala-te e faz uma destas duas coisas: ou recolhe a mistura de meu laboratório com um caldeirão ou serra meu torreão. E esta é a única vez que lhe dou alguma opção que não seja a morte ou a profanação do corpo de tua mãe!”



Fechei a cara e fui serrar o mastro. A madeira era rígida e a água do mar tornou a tarefa ainda mais árdua dando mais aderência da peça à serra. Depois de serrar três vezes eu subia à tona para tomar ar e voltava. Entendi o castigo do velho. Maldito pirata cheio de engenhosidades para afirmar sua autoridade vil e corrupta. O galeão de teus olhos entornou antes mesmo de tua partida na hora em que o concebeu em seu delírio de grandeza de pirata. Teu plano de tornar-se um homem da burguesia e da corte falhou pelas companhias eleitas para sua jornada. E por tudo isso o culpado seria eu pelo azar da sobrevivência e pela burrice da lealdade.



Trazer a peça para a superfície não foi tão difícil quanto a lida que foi para removê-la. Levá-la para cima do casco seria um inferno se o velho não tivesse me ajudado com uma corda e um sistema de roldanas amarradas a cada lado do navio.

Enquanto eu estive naquela lida ingrata o velho havia trazido quase todas as roupas do navio. Parte delas calçava o caldeirão onde estava sua porção diabólica. A placa de uma armadura tampava a panela e o vapor a esquentava a ponto de possibilitar o preparo do peixe. A carne branca foi temperada com as ervas e vinho que o velho pegou de um dos barris do navio ou do alforje de alguém morto.



Fui em direção ao peixe notando pela primeira vez naquele dia a fome que eu sentia. O velho ficou entre eu e aquele banquete mínimo e necessário.



“Antes de comer quero que você pegue banha na cozinha, piche e graxa no depósito.” – a fala era calma apesar de séria. Como a de um professor depois de ralhar com seu pupilo. Ele me ofereceu água e eu neguei racionando como fazia já completariam cinco dias. – “Quer tomar da tigela só de curiosidade, marujo estúpido?”



O velho tirou cuidadosamente a lente de cima da tina e tirou de lá a tal tigela. E eu tomei a água sem gosto e morna daquela peça que provavelmente adornaria a mesa de casamento ou o batizado de um bem nascido. Eu, miserável e sedento. Quando ajoelhei para descansar e apiedar-me quieto de minha má sorte o velho me cutucou com seu dedo sangrando.



“Trabalhas até o Sol cair, marujo! Sois minha tripulação. Vá pegar as coisas que mandei trazer-me!”



Fui pegar as tais coisas e quando voltei o velho estava agarrado ao pedaço do mastro que tirei da água. A estrutura pendia de um lado para o outro forçando o velho ao sabor das ondas enquanto um sistema de cordas que usava o leme e o talha-mar como pontos de apoio lhe dava alguma estabilidade. A estrutura era calçada por outro amontoado de roupas.



“Pegou o machado que te pedi?” – o velho chegou por trás sorrateiro e mandão.



“Não pediu machado algum!”



“Então não me lembre disto e vá pegar, marujo estúpido!” – fui pegar o tal machado já menos ofendido pelo jeito burlesco daquele velho.



Quando cheguei o velho levantava o mastro e o cesto com tremendo esforço abraçando o construto. No casco do navio estava o amontoado de roupas formando um anel embebido em piche.



“Dê um golpe só aí onde está marcado!” – o pirata louco marcara seu casco perfeitamente vedado com um “X”.



“Agora estás louco mesmo! Eu não vou fazer isto!” – eu disse levando minha mão à pequena faca que eu tinha disposto a mata-lo ali para o bem de ambos.



“Marujo desgraçado e ignorante! Bata nesta marca que eu tampo com o mastro. Perturbe meu comando mais uma vez e eu solto isto tudo de uma vez. O mastro vai quebrar o casco, romper o lastro e daí sim meu galeão irá naufragar de uma vez. Bata com o machado na marca que fiz ou eu afundo este navio e nado até a costa para salvar minha pele, e eu já fiz isso. Juro que pensarei no que vou fazer com toda sua família enquanto a caço até o inferno!”



Assumo que foi por medo. O velho falou de dentro de seus anos e agruras e evocou dentro de mim o temor do menino que eu era. Bati na tal marca e ele soltou o mastro. Num golpe muito rápido de astúcia diabólica ele abraçou a madeira em um ponto onde a estrutura sobressalente rompia o casco, mas não violava o lastro. A roupa que rodeava a marca aderiu à secção do mastro à medida que o mastro afundou na fenda preenchendo os vazios entre este e a madeira onde sobrevivíamos.



O velho ordenou que eu comece e calasse a boca. – “Enche tua boca de comida!”. – Quando eu estava me fartando e já ignorando toda má sorte e trabalho, o velho suspirou e um semblante preocupado e desolado cobriu seu rosto enquanto ele se esforçava em fazer o mastro não ceder uma polegada sequer.



“Se não comermos frutas dentro de um mês estaremos cegos, loucos, preguiçosos, desdentados. Ou isto tudo de uma vez ou cada uma dessas coisas dia a dia...” – o velho suspirou de novo – “Da última vez que naufraguei eu estava com uma mochila cheia de mangas e bananas que peguei na Índia. Daquele navio sobrou apenas o talha-mar ornado com uma sereia muito bela e de madeira muito perfumada. O único sobrevivente além de mim era um marujo um tanto mais forte que tu. Era também pouco menos esperto e pouca coisa mais intransigente. Respondeu-me de sopetão dizendo que eu era um velho pirata de merda. Abri sua barriga e fiz tuas tripas de rédeas. Voltamos a Goa em três dias. Passei a viagem apoiado nos seios da minha sereia e até fiz amor com ela, acredite!” – o semblante do velho retomou seu sadismo velhaco e ele sorriu – “O marujo cretino eu mandei que colocasse as tripas na cabeça e as escondesse com um turbante. Vendi-o a um paxá como eunuco. Ele até tinha ficado mais dócil durante a viagem. Mas se eu não o fizesse eunuco não teria o suficiente para voltar para a Europa...”



Eu sentia meus olhos arregalados como se minhas pálpebras estivessem com câimbras. Eu era todo ouvidos ao velho. E temia mais do que nunca pela minha vida na calmaria daquela noite.



“Confesso que não vi a tormenta vindo. Que fiquei bêbado em meus aposentos brincando com meu laboratório crente no sucesso de achar a tal pedra filosofal. Não tenho idéia do lugar onde a nau virou e por enquanto nenhuma noção de onde estamos.” – seu ar era culposo e resignado. Ele contraiu os músculos todos de seu corpo como se ele fosse não o homem que sustentava aquela coisa toda, mas o nó que atava tudo.



“Creio que o sereno desta noite e o sol de amanhã enrijeça o selante que improvisei. Da última vez que naufraguei eu não tinha mapas, agora não tenho frutas. A partir de amanhã tua única tarefa será ir ao meu navio invertido para estender as velas. Quero ver se de cabeça para baixo a nau viaja pelas correntezas. Farás isto todo dia. Enquanto a mim eu estarei no cesto descansando e lendo meus mapas. Agradeço teu fio de cabelo. Montei um sextante tosco com ele e alguns ossos de peixe. No mais desço quando bem entender. E não me perturbe o sono ou mato teu pai só para me casar com tua mãe e te fazer homem! Você é fraco demais para levar este galeão com as tripas!”

terça-feira, fevereiro 23, 2010

"Oh, ficção! Livrai-me do Teorema de Fermat!"

Conhecem aquela do físico que não comia chocolate porque de meio amargo já bastava sua vida?


Imagine Superman voando pelos céus de Metrópolis. À esquerda de sua rota de vôo, Louis Lane cai em queda livre. O Homem de Aço caí aos prantos. “NÃÃÃÃÃO! Maldita física newtoniana que não permite que eu faça uma curva agora sem ter alguma força externa para alterar a inércia do meu movimento!”.

A cena pode parecer estapafúrdia. Mas é assim que seria a ficção se obedecesse aos caprichos das leis da física. Enquanto a Física estuda o tangível, a ficção lança mão do imaginário para criar universos.

Mas para o físico Sidney Perkowitz, os filmes de Hollywood deveriam limitar-se a desobedecer somente 1 (uma) lei da física em toda sua trama e fazê-lo somente de uma maneira coerente e justificada na trama. O professor é membro da Science and Entertainment Exchange, um órgão ligado à Academia Americana de Ciências.

Uma experiência que Perkowitz cita como um filme aos moldes que propõem é “The Core” (entitulado no Brasil como “O Núcleo - Missão ao Centro da Terra”). Nesse filme, um geofísico descobre que um experimento que falhou faz com que movimento de rotação do núcleo da Terra pare. No filme, isto traz conseqüências catastróficas em todo o globo e os heróis do filme têm a missão de chegarem ao centro da Terra para reativar a rotação.

O roteiro de “The Core” é muito interessante para uma questão de Olimpíada de Ciência. Como cinema, “The Core” possui diálogos primários em função da explicação de cada minúcia científica apresentada. Perkowitz assume que a aceitação do público deste tipo de ficção científica é um problema de Hollywood. Ele ainda acredita que o petardo do “entretenimento científico”, The Core, não deu lucro nas salas porque as pessoas entendem ciência como coisa de bitolado” (na verdade esta é a tradução mais sensata para “out to lunch”).

O físico está sendo meramente mesquinho despindo a ficção científica de sua matéria-prima: a imaginação. Sua proposta não ajudará na pesquisa de partículas quânticas ou na resolução da hipótese de Riemman. O que o professor está fazendo é exatamente como deslizar um tijolo em uma rampa de madeira assumindo a ausência de atrito e adotando a CNTP (25ºC de temperatura e 1 atm de pressão). Perkowitz crê que calando a explosão da Estrela da Morte as pessoas irão se interessar por ciência, quando isso não apresenta nenhuma relação causal. Ele não conta que as pessoas anseiem pelo surround e sub-graves que as fazem crer que aquilo existe muito mais que os méson-pi ou neutrinos que são estudados nos grandes centros de pesquisa.

Perkowitz está ainda, de maneira estapafurdiamente inovadora, dando uma nova dimensão ao fetiche do real que tem estado tão presente no entretenimento nos últimos anos. Vivemos uma falta de abstração tamanha que reality shows são criados às pencas com uma pá de variáveis. Não é de se estranhar que muitos façam relações desses programas com experimentos com ratos. Os conceitos de reality shows são quase como algoritmos de programação. Molda-se o ambiente, fixa-se objetivos e as variáveis são inseridas (no caso, os participantes). O auge da fruição cultural da massa atualmente é quando dois ex-anônimos forçosamente reais em frente as câmera fazem sexo, a verdade absoluta de uma sociedade carente e sem imaginação.

A ficção científica são as fábulas e contos de fada de nossa era. Nasceram com H.G. Wells e Julio Verne e ao longo do século XX foram se consolidando com nomes de peso como George Orwell e Aldous Huxley até se popularizarem com Philip K. Dick e William Gibson. Uma coisa a se notar é que não é o fantástico que se faz cerne nas histórias, mas sim os conflitos e questões que afligem os personagens. Um mundo extraordinário é um mundo que nos leva a embates extraordinários seja dentro da própria narrativa ou desta com o leitor. É sobre isso que é ficção científica e não sobre ciência. Se é para se divertir com física, que coloquem piadinhas em forma de questões nos livros da coleção “Fundamentos da Física”. “Um padre de massa m voa suspenso por balões de volume v e é submetido a um vento de velocidade x...”.

domingo, fevereiro 07, 2010

Quando éramos losers
Houve um tempo em que o cuecão era a lei e um homem tinha que saber tirar chiclete do cabelo

Uma cena da minha pré-adolescência ficou muito bem gravada na minha memória. Foi numa manhã antes da aula, por volta das sete. Eu, então com uns 13 ou 14 anos, entrei em um dos botecos que rodeavam o Colégio Objetivo de Goiânia. Comprei um chiclete dos Cavaleiros do Zodíaco, coloquei uma ficha na jukebox para ouvir Raimundos e fui jogar Street Fighter no fliperama.

Nisso, uma colega de colégio encostou de lado na máquina. Ela quase não falava comigo e sempre estava de nariz empinado. Usava uma blusa do Hard Rock Café, como todas as outras que já tinham ido para a Disney. Com um olhar forçosamente reprovador fez um “tsc, tsc, tsc” e me perguntou “quando você vai crescer?”. Para terminar seu bullying-happening colocou um cigarro Free Light (também conhecido como “ar sabor cigarro”) na boca e deu uma tragada com os olhos fechados. Subitamente começou a tossir como uma velha asmática me olhando com raiva como se aquilo tivesse sido culpa minha.

Houve um tempo em que ser adolescente era isso: era ser zoado. Não era algo que “agredia a auto-estima”. Era apenas apontar a cara do pentelho mais próximo e soltar um sonoro “DAHR”. Estendíamos o indicador e o polegar em L na testa mostrando a língua ou com aquela cara de indiferença juvenil. A própria zoação por si só era uma idiotice sem tamanho. A imbecilidade se retro alimentava de hormônios, frustrações e cenas vergonhosas.

Imagino um moleque repreendido na escola por ter apelidado um “coleguinha” (adoro quando tratam crianças pelo diminutivo, psicologia xuxesca pura). Penso no quanto esses pestes podem ser mais criativos. “Pirulito”, “biloquê”, “caixa d’água”, “Sputnik”, “maçã do amor”. Quero dizer, “cabeção” pode ser um trunfo em termos de agressão, mas não tem a sofisticação de “ele não passa piolho porque a gravidade da cabeça dele não deixa”.

Quando leio certas publicações e textos que falam em “auto-estima” imagino um mundo acolchoado e de cantos redondos. Uma utopia asséptica onde ninguém se machuca ou se sente mal. Para quê?

Eu acredito que amadurecer é saber lidar com críticas. E não me venham falar em crítica construtiva. Isso é coisa de gente de sorriso bobo e voz mole, o tipo de gente que fala com qualquer um como se falasse com uma criança. Se uma pessoa não encara a afronta do outro, como ela se reconhece ou até se impõe?

Houve uma época em que nós tínhamos um mínimo de atrito na adolescência. Esta insistência em um mundo sem estes atritos só cria pessoas ainda mais sujeitas a frustrações e que não sabem lidar com divergências ou só lidam em termos de cortesia. Cortesia pode ser uma das melhores virtudes do homem, mas a corda rói eventualmente. E daí aparecem os pitis. Daí as pessoas se chamam de “intensas”, “sensíveis” ou “condoídos”, quando deveriam ser chamadas de “imaturas”.

As pessoas crescem. Aprendem que o mundo é mau e todo mundo morre no final. É uma lição muito mais tenra do que a maioria das pessoas imagina. O Poetinha já falava que “é melhor viver do que ser feliz”. Quando Vinicius de Moraes estava nos Estados Unidos traduzindo sua obra para o mercado fonográfico, um americano observou: “It’s better live AND be happy”. Não entendeu. Gringo burro!

domingo, janeiro 10, 2010

Estão todos Analfabetos!
"Largue esta auto-ajuda e vá ler uma bula de remédio!"

Jornal do local, por volta de meio-dia. Numa passagem ao vivo uma repórter entrevista uma lojista que timidamente fala sobre as vendas da primeira semana de janeiro. Talvez fosse o gaguejado insistente ou o plural eclipsado pelo nervosismo, mas aquela mulher soava como alguém que estava prestes a soltar alguma abobrinha. A passagem se prolonga numa falta óbvia de pauta do jornal aumentando a chance da entrevistada amarrada soltasse alguma pérola. "Desculpa o trocadilho, mas a gente teve que vender para ter lucro, né?".

O que pareceu ser uma implicância pedante se mostrou como uma percepção rápida. Não era a primeira vez que eu havia ouvido aquela expressão - "desculpe o trocadilho" - e também não era a primeira vez que eu via alguém usando erroneamente. Desculpe a moça nervosa, mas as pessoas vendem para ter lucro, o lucro é a razão da venda. Não existe nenhum trocadilho ali. Lembrei-me de uma tagarela numa festa falando que fulano caiu na mesa e pedindo desculpa pelo trocadilho. Na verdade o fulano tinha literalmente caído na mesa, não havia nenhuma trocadilho ali também.

O que me parece é que "desculpe o trocadilho" tornou-se o novo "literalmente", uma expressão que na boca de analfabetos funcionais perde o sentido e ganham um pretenso efeito. Falar mal significa escrever pior ainda e não é petulância minha dizer que a maioria da internet é analfabeta de pai, mãe, parteira e padrinho.

Acredito que seja pecado resumir uma teoria ou uma visão de um autor a uma máxima, mas Heidegger mostra isso bem quando demonstra que a consciência do ser denota domínio de linguagem. Uma pessoa em sua plenitude intelectual e pessoal domina a sua língua melhor que alguém inculto e dependente de pertencimento. A maioria das cacofonias e diversos maus usos das palavras parece ocorrer não só por simples modismos, mas por isso aliado a uma... burrice geral (é eu apelei). "A nível de", "tipo assim", "literalmente", "à priori" (assim craseado) e agora "desculpa o trocadilho". Eu desculpo, burrice (infelizmente) não é pecado.

Carentes de sentido, as pessoas usam penduricalhos em suas falas assim como escrevem em negrito e caixa alta na internet. A fala pseudo-empolada é sempre uma tentativa de encobrir a falta de articulação ou a falta de conhecimento sobre determinado assunto. No caso citado sobre a mulher sendo entrevistada tratava-se apenas do efeito colateral causado por nervosismo. Mas nas rodas de conversa de "Dan Brown a nível de Paulo Coelho" esses estrupícios lingüísticos aparecem aos montes.

Quem fala assim não é gente dita humilde e sem instrução, mas sim gente que vive intelectualmente a base de sub-literatura e pseudociência. Gente pronta para degustar todo tipo de visão pré-fabricada de mundo digerível e didaticamente explicitada. Aquilo que Dwight Mc'Donald (mestre do elitismo cultural) denomina de midcult, a cultura pequeno burguesa com aspirações a profundidades marolísticas feita para um público carente de inteligência.

Esta minha inconformidade só pode parecer (e ser julgado e condenado como) um impeto censor para estas mesmas pessoas. Estas que não sabem ler, não sabem escrever, não sabem falar, não sabem pensar. Vêem o mundo com padrões de "certo" e "errado", "bonito" e "feio", "direita" e "esquerda". Possuem uma visão de mundo mais que daltônica, acromatóptica, só lhes são explícitos tons de cinza e qualquer nuance é razão de estranhamento. E todo estranhamento é validado como erro.

domingo, dezembro 27, 2009

Reflexões (a)temporais
O que uma mente doente de massa "m" pode pensar de estúpido dentro de uma variação de tempo ocioso ao quadrado

Estamos passando mais uma vez do ano 9 de uma década para o décimo e último período deste espaço de tempo. Mais uma vez os desavisados e necessitados de marcos comemoram o final dos anos 00 enquanto os puristas temporais ficam na ladainha tentando salvar mais uma década. As previsões de catástrofes não anunciam o próximo ano com visões de tragédias, mas sim dali a dois anos (pessoalmente espero que seja a última previsão de fim do mundo, apesar de imaginar que outras virão).

O fim do ano é um tempo de reflexão e promessas para muitos. Para mim é só mais uma prova da redundância de nossas existências. Trata-se de um espaço de tempo em que deixamos tudo para a última hora, evocamos um carinho burocrático em honra das pessoas próximas a nós, cumprimentamos pessoas como se déssemos bom dia a cavalo, nos empanturramos de comida jurando começarmos uma dieta. Somos os piores seres humanos do mundo como em qualquer dia. A diferença é que fazemos isso com um brilho esperançoso e tolo no olhar que só as propagandas da Casa Bahia poderiam fazer mais justiça.

Assim como Jim Morrison, eu acredito que o dia destrói a noite e as noites apenas dividem os dias. Nossa relação com o tempo é meio patética. Se você for pensar bem profundamente a divisão do tempo é apenas uma convenção. Não existe um relógio universal sobre nossas cabeças mostrando a hora certa assim como ninguém demarcou no céu as linhas imaginárias (o que eu acho uma idéia ótima). Posto desta forma, assim como os americanos e ingleses usam jardas e polegadas ao invés do sistema métrico, eu gostaria de saber porque não existem formas alternativas à sagrada trindade do segundo-minuto-hora?

Eu sei que eu estou procurando sarna para coçar e inventando problema para uma das poucas coisas melhor acertadas da humanidade. Mas o pensamento crítico que me estimularam nestes anos de educação formal se perverteu em uma demência crítica. E esta força me leva a perguntar: por que eu não posso justificar meus atrasos por um problema de conversão que (in)felizmente não existe? Sim, eu estou sendo egoísta, mas você não é quando pode?

Eu poderia muito bem, talvez, adotar o tal "tempo psicológico" como minha medida temporal. Sendo assim, eu utilizaria o próprio pensamento como uma unidade de tempo. O legal disso é que se você tem algo para fazer e se foca naquilo então para todos os efeitos o seu tempo está parado. Seria a morte do deadline. "Seu tempo para fazer isso acabou!". "Como assim? Eu ainda estou pensando nisso, seu trouxa! HA!". Outra conseqüência direta disso seria a literalidade da ofensa "lerdo".

A verdade é que isso já existe. Assim como a maioria das pessoas acredita em suas vidas como roteiros de cinema com trilha sonora, o tempo de suas vidas é bem psicológico. Na verdade o tempo destas é mais literário ou cinematográfico. São pessoas que falam em "cenas" ou "capítulos" da sua vida e não costumam ser muito interessantes. Seu domínio verbal estancou na primeira pessoa e a obra prima que é a vida destas pessoas é o único assunto do qual tratam. Sabe a frase "tenho medo de homens de um livro só"? Pois é, dá para ter uma noção de como elas são.

Só o enfado que é conversar com este tipo de gente dá uma noção do conflito que seria abolir a convensão do tempo. Mesmo que isso facilitasse a vida de pessoas que vivem expostas aos efeitos de jet lag, estaríamos colocando pêlos em ovo para depois cortá-los dando murro em ponta de faca. O tempo é o mesmo para todos e não precisamos de tabela de conversões para chegarmos atrasados ao cinema que marcamos com nossas namoradas ou adiantados em entrevistas de emprego. O tempo vai continuar sendo a pentelhação onipresente.

domingo, junho 21, 2009

Colocando os pingos em “pingüim”

O termo kitsch é uma coisa meio perigosa de se conceituar. Bastante conhecido e comentado, o kitsch é uma estética a grosso modo brega. A forma mais fácil de se entender o que é kitsch é só imaginar a casa de um cabelereiro suburbano. Imagine a quantidade de lembrancinhas trazidas pelas suas clientes de Guarapari a Las Vegas. Imagine agora a sala de estar das clientes dele. Junte tudo em uma sala rosa com o teto forrado de anjinhos pintados de dourado.

Não sei quando o termo nasceu, mas sempre imagino sua concepção. Acho que foi quando algum frankfurtiano exilado nos EUA dos anos 40 jantava na casa de seu orientando mais burro. Diabético, o emérito acadêmico se via obrigado a tomar uma limonada sem açúcar. Conversando com o pai de seu aluno, o teórico já não agüentava ouvir “mas vocês alemães isso. vocês alemães aquilo”. Enquanto isso a mãe do pupilo preparava um assado de porco. Judeu e temperamental, o acadêmico acabou surtando conceitualmente e criou o “kitsch”.

Essa semana fui posto pela primeira vez frente a uma definição acadêmica de kitsch. O kitsch possui como características a exuberância, a pretensão ao belo e a inadequação. Concordei em gênero, número e grau. No entanto, uma dúvida surgiu na minha cabeça.

O símbolo do kitsch é o pingüim de geladeira. Desde quando temos um primeiro contato com o termo aceitamos isso como uma fórmula de Física. Pingüim em cima da geladeira igual a kitsch para qualquer massa do pingüim, consumo de energia da geladeira ou coeficiente de elasticidade da dona da geladeira.

Ora, o pingüim de geladeira não é uma coisa exuberante. Um pavão de geladeira seria bem exuberante. A ave de porcelana também não parece ter maiores pretensões estéticas. Eternamente vestido em black-tie, o pingüim de geladeira é um artefato fadado à elegância. O que há de inadequado em um pingüim em cima da geladeira?

“Ora, o lugar do pingüim não é em cima da geladeira, mas dentro dela!”. Responde a razão. Apenas um esquimó coloca pingüins DENTRO da geladeira. Mesmo assim só antes de guardá-los para mais tarde fazer "pingüim à passarinho". Aliás, devido às baixíssimas temperaturas dos pólos eu duvido que um esquimó precise colocar um pingüim dentro da geladeira. Seguindo esta lógica, kitsch é colocar o pingüim dentro da geladeira. Não é só kitsch como meio estúpido. Um desperdício de energia que acelera o aquecimento global, degradando o habitat dessas aves.

Então Duchamp colocava o que ele quisesse em um museu para chamar de arte e quebrar os paradigmas da época. Mas a dona Maria americana (Mrs Mary) não pode colocar o pobre pingüim em cima da geladeira. “Tá fora do lugar!”. Então se eu roubar um Pollock e coloca-lo embaixo da minha cama ele vira kitsch? Se eu virar um ladrão à la Thomas Crowe e colocar as obras-primas da arte contemporânea embaixo da minha cama, isso faz de mim um gênio da arte ou do crime? (ou do mal? Bwa-hahahahaha!)

O que os teóricos não percebem são as leituras e intenções subliminares no posicionamento do pingüim em cima da geladeira. Ao contrário da maioria das aves, o macho dos pingüins é responsável por chocar os ovos da espécie. Este era o tipo de coisa que as donas de casa americanas eram expostas em almanaques de curiosidade.

E o que parecia ser apenas conhecimento banal para puro entretenimento ou artigo de citação em jantares com amigos na verdade foi o primeiro contato da dona-de-casa americana ("housewife") com uma perspectiva feminista. No final das contas, o pingüim em cima da geladeira simboliza o gérmen do feminismo. A mulher coloca na geladeira (berço da cerveja, o néctar-simbolo da masculinidade) o macho que toma conta das crianças. Quando chegava em casa e abria a geladeira, o homem não se dava conta do protesto velado da mulher. Bem como ela também. É tudo uma questão de inconsciente coletivo.

É de se estranhar tudo quando as coisas se tornam explícitas, não?

terça-feira, janeiro 06, 2009